domingo, 12 de abril de 2020

Hollywood e a garota feia de óculos

                 Bem, tenho esse blog há anos, desde que era literalmente uma adolescente... Ensaiei deletar essa conta por meses, pensei em reformulá-la do zero, por fim decidi mantê-la apenas como um arquivo até que o próprio blogger se implodisse (no melhor estilo orkut) e meu pequeno blog desaparecesse junto com ele.
                 Fazem anos desde a última vez que dividi meus pensamentos nessa plataforma, por assim dizer, mas hoje me senti compelida a fazê-lo. Aqui parece ser o lugar certo para que esse texto fique exposto, para futuras leituras.
                 Lembro-me de ler um ensaio, em inglês, de Isaac Asimov, de 1956 (PASMEM!) sobre um clichê hollywoodiano - a garota feia de óculos que miraculosamente torna-se bela ao tirar os óculos. O texto me marcou à época, pela clareza, descontração e objetividade de Asimov, algo que eu saberia depois, é uma constante em sua escrita. Seus livros tem o tipo de leitura prazerosa e empolgante que você experiencia ao ler O Guia do Mochileiro das Galáxias de Douglas Adams, por exemplo.
               Enfim, comentei sobre esse ensaio com pessoas em uma rede social recentemente e recebi mensagens me perguntando se era um texto fácil de ser encontrado e respondi que não, infelizmente. Quando o li estava em inglês, como mencionei antes, e ainda assim procurando novamente em 2020, não estava disponível em sua totalidade, apenas em frases desconexas.
               Então aqui está o trecho completo que me deu MUITO TRABALHO DE ENCONTRAR  (colocarei os links no fim do post) com uma tradução feita por mim, para a sua apreciação:

"O clichê a que me refiro é aquele pelo qual se supõe que uma atriz consideravelmente bela, a quem chamaremos "Laura Lovely", é feia, desde que esteja usando óculos. 

Isso acontece repetidamente. Laura Lovely é uma bibliotecária ou professora (as duas ocupações femininas que, pela convenção de Hollywood, garantem a solidão e a infelicidade) e, naturalmente, ela usa óculos grandes de concha de tartaruga (o tipo mais intelectual) para indicar esse fato. 

 Agora, para qualquer homem funcional da audiência, a visão de Laura Lovely com óculos evoca uma reação não muito diferente da visão dela sem óculos. No entanto, para a visão distorcida do ator que interpreta o herói do filme, Laura Lovely com óculos é simplória. 

Em algum momento do filme, uma amiga gentil de Laura, que conhece os fatos da vida, tira os óculos dela. 

 De repente, ela consegue ver perfeitamente bem sem eles e nosso herói se apaixona completamente por Laura - agora linda - e há um final perfeitamente glorioso. 

 Existe uma pessoa viva tão estupida que não vê que (A) a presença dos óculos de maneira alguma arruinou a aparência de Laura e que nosso herói deve estar completamente ciente disso; e (B) que, se Laura usa óculos e por qualquer razão ela os remove, faria com que ela beijasse o homem errado, pois provavelmente não seria capaz de distinguir um rosto do outro sem eles? 

 Não, os óculos não são literalmente óculos. 

Eles são apenas um símbolo, um símbolo de inteligência. O público aprende duas coisas: (A) A evidência de educação extensiva é um obstáculo social e causa infelicidade; (B) A educação formal é desnecessária ..."
                                                                                                     Tem alguém aí?, Isaac Asimov


Abaixo vocês podem observar alguns exemplos desse "fenômeno". Estou certa que conhecem mais um ou dois exemplos.



                                                           A Beira do Abismo (1946)

                                                             Batman: O Retorno (1992)

                                     

Ela é Demais (1999)

                                                                  Miss Simpatia (2000)

O Diário da Princesa (2001)

Casamento Grego (2002)

Bela, a Feia (2009)

Esquadrão Suicida (2016)

              Agora a razão que me fez querer postar isso aqui é o último paragrafo do texto de Asimov.
"... os óculos não são literalmente óculos. Eles são apenas um símbolo, um símbolo de inteligência..."  
             Relendo isso hoje, o trecho ressoou dentro de mim. Por que a inteligência (mesmo que simbólica) quando associada a uma mulher deve ser apagada completamente em prol de uma maior aceitação e reconhecimento?
             Existem exemplos de transformações masculinas no cinema, obviamente, mas elas quase nunca retiram do personagem sua agência ou mesmo sua essência. Ele apenas ganha roupas mais descoladas.
             Já que estamos nesse assunto de óculos e transformações, falemos de Clark Kent a.k.a Superman.
Um alien nascido em Kripton, chamado Kal-El, precisa se esconder, se disfarçar e se misturar entre os humanos... E que peça de acessório ele escolhe (quase como uma máscara) para se vestir de "cidadão comum"? Assim como o de nossas protagonistas anteriores, um par de óculos.

                                                           Batman vs Superman (2016)

             Então qual a diferença? Por que em Kal-El a inteligência e o intelectualismo não somente são ferramentas que o personagem utiliza para compreender a si mesmo e o mundo em que vive como é também incentivada pela narrativa?
             Por que ao COLOCAR os óculos, ele não perde a sua essência de Superman mas as Lauras Lovelys ao TIRAREM seus óculos automaticamente tornam-se novas e "mais interessantes" versões de si mesmas?
             Bem, esse exercício mental é a razão de eu ter escrito esse texto.

É o sexismo.

Link interessante:
artigo sobre o texto do Asimov